Joan Chittister | Raiva: uma virtude para os nossos tempos, porque o silêncio não está funcionando
Este ano, a pedido da Editora Vozes, traduzi um livro da Irmã Beneditina Joan Chittister - Entre a Escuridão e a Luz do Dia. Apaixonei! Hoje me senti obrigada a traduzir este artigo, publicado originalmente aqui.
""Falando em termos gerais", disse o Dalai Lama, "se um ser humano nunca demonstra raiva, acho que algo está errado. Há algo de errado em seu cérebro ".
Li essa afirmação e comecei a pensar novamente: o fato é que estou perturbada porque estou buscando por mais raiva do que a que estou ouvindo. O silêncio que estou ouvindo soa como uma sentença de morte.
A conversa não está fácil hoje em dia, eu sei. Está difícil conversar com alguém sobre qualquer coisa sem tocar em política. E esse é um território perigoso. Você nunca sabe que relação social poderá ser destruída. Uma amizade importante? Um relacionamento familiar próximo? A festa no quintal que acontece há anos, organizada pelo vizinho que faz churrasco? As pessoas com quem trabalha? O seu casamento?
Então ninguém fala. Todos os temas considerados importantes, interessantes e relevantes estão fora da lista. Até a política. Talvez acima de tudo, a política.
Afinal, fomos criados para sermos agradáveis. Ensinamos nossos filhos a serem agradáveis. Mas hoje, ser "agradável" é ter conversas que não levam a lugar nenhum. Nada de opiniões. Nada de novas ideias. Nada de conversas que antigamente eram cheias de brilho, educativas. A conversa, hoje em dia, simplesmente morreu, se transformou em nada. Não há muito a ser dito. A conversa "agradável" concorda com tudo, ouve, mas não busca sentido, não desenvolve ideias e não apresenta dados para abrir novos aspectos sobre o tema. Essa gentileza, esse "ser bonzinho" garante que todos nós nos tornemos hipócritas. Nós sorrimos. Não dizemos nada em contrário. Nada acrescentamos à sabedoria ou à honestidade da raça humana.
Mas "ser bonzinho" – manter o silêncio em prol da paz - não é uma virtude; ser bonzinho é, no máximo, uma fuga da realidade, a camuflagem da honestidade. E assim, não corrige nada. Não reúne as famílias, os amigos, os colegas - o país - novamente. Simplesmente aumenta a distância entre nós. Onde não há possibilidade de discutir coisas difíceis juntos, não há relacionamento a ser salvo. Quanto maior a distância, maior a pseudo-relação.
O silêncio simplesmente não está funcionando.
Parece-me, então, que precisamos de uma nova categoria de virtudes para tempos como esses. Precisamos do tipo de virtude que nos permite fazer algo a respeito do que está nos incomodando. Para resolver uma discussão, precisamos avançar nessa discussão. Então, vou sugerir algumas abordagens diferentes para estes tempos difíceis, na esperança de que, enfrentando tudo de frente, possamos de alguma forma encontrar o caminho de volta para perto dos amigos, familiares e vizinhos, com honestidade e sem rancor.
A primeira virtude que sugiro para esta era de frustração reprimida é a raiva.
Isso mesmo: a raiva.
É a raiva que inclina o eixo da terra, nos arranca da rede de dormir e nos atira no centro da realidade. Paramos de perambular pela vida.
A raiva é o que brota em algum ponto entre o antagonismo e o ódio dentro de nós. A raiva não surge para destruir. Ela surge para exigir uma resolução. Nós já sabemos que as coisas simplesmente não podem continuar como estão. A raiva demonstra essa inquietação e trabalha em direção à resolução. Ela nos mostra que alguém tem algo mais a dizer, algo que precisa ser dito, se é que queremos nos recuperar da ruptura que separa os segmentos de nossas vidas.
Melhor ainda, a raiva é o ponto em que algo mais deve ser feito se quisermos que nossos pequenos mundos particulares voltarem a se equilibrar.
A raiva, em sua forma saudável, não se destina a ser má ou cruel. Se for assim, ela é de fato inútil e fora de controle e, nesse caso, a raiva se torna o problema e não parte da solução. A raiva simplesmente diz "basta!" É exatamente quando o compromisso de encontrar uma solução finalmente surge.
Então compreendemos que a raiva sagrada diz respeito ao que nos causa raiva e à consciência da função da raiva no mundo. De fato, é o que nos deixa com raiva que mede a profundidade de nossas almas.
Quando o que nos causa raiva é ver crianças imigrantes presas, é hora de fazer alguma coisa. É hora de recusar que nosso silêncio seja interpretado como uma aprovação daquilo que não gostamos. É o momento de deixar claro que, se esse tipo de comportamento não parar, haverá consequências. É hora de levantar as mãos em público, fazer uma declaração clara para todos vejam: "Conte comigo".
A raiva é a necessidade que temos de tratar de um assunto até que ele se resolva, mas também é o momento de percebermos que a resolução não acontecerá, a menos que tenhamos a intenção de elevar a compreensão e a sensibilidade com respeito aos outros. É preciso tomar uma posição, mas procurando entender as necessidades que estão por baixo de posições totalmente diferentes. A raiva não insulta, não humilha e nem julga uma pessoa que toma posições diferentes das minhas. Ela busca o meio termo para atender às necessidades de todo o espectro humano, e não apenas às minhas.
A verdade é que a raiva se preocupa, mas a raiva também escuta. Escutar é a única maneira de duas pessoas se unirem, respeitando ideias diferentes e com abertura genuína a outro ser humano.
A raiva, em outras palavras, é um contador Geiger. Ela detecta as bombas-relógio do coração. Traz luz. Ela busca as suas ideias-raiz. Ela busca complementar os dados disponíveis. E isso aprofunda a abordagem de um determinado tema. Traz profundidade. Exige que analisemos nossas próprias posições de forma mais crítica. Acima de tudo, isso pode nos levar a uma compreensão mútua que, por sua vez, pode nos levar a encontrar outra maneira de resolvermos uma situação juntos.
A raiva sagrada não nos endurece em nossa posição; ela nos leva a fazer algo para buscar soluções. Acima de tudo, torna impossível que continuemos sendo superficiais. A raiva nos diz que há algo acontecendo nessa situação que precisa ser revelado. Algo que precisa ser curado. A raiva saudável não ferve nem queima; ela se junta ao chamado para encontrar outro caminho.
Raiva é energia. Ela nos afasta da TV para escrevermos uma carta a um senador dos EUA sobre empréstimos a estudantes ou ao conselho escolar local sobre a necessidade de cuidar melhor da cidade. Ela elimina a complacência que se instala na vida antes que seja tarde demais para nos salvarmos da “gentileza” que silenciosamente azedou. Abre nossos olhos para novas necessidades.
A raiva também nos conecta. Ela nos coloca em contato com pessoas que sabem mais do que nós sobre um determinado assunto, ou nos tira do sofá para fazermos algo para desmascarar o que se esconde sem contestação na sociedade. Ela rasga o curativo da gentileza com o que quer que esteja moldando nosso mundo, enquanto nos recusamos a fazer nossa parte para moldá-lo.
Acima de tudo, a raiva é um sinal que eu envio ao o mundo sobre a importância do que me preocupa. Clama para que o silêncio público seja quebrado.
De onde eu estou, sinto muita raiva por colocarem crianças estrangeiras em gaiolas. Incapazes de expressar seus medos, elas vivem o terror de despertar novamente, dia após dia, em um lugar estranho, sem suas famílias por perto para cuidar delas.
Também sinto muita raiva pelo o fato de o insulto pessoal ter se tornado uma característica aceitável de um sistema governamental americano que se baseia mais na injúria do que na razão. Para piorar a situação, ter como símbolo da América um presidente que humilha outros - até aliados - que pensam de maneira diferente dele, é um ataque contra a própria democracia. Pode muito bem nos isolar em um mundo que está rapidamente se tornando uma vila global.
Sinto raiva de ver o sistema presidencial americano se transformando rapidamente em uma monarquia. E estou com muita raiva de um congresso adequado, mas silencioso, sem consciência, que está permitindo que a democracia se deteriore diante de seus olhos. Eles não dizem nada, enquanto os parlamentares britânicos se levantam e cruzam os braços pelo corredor para salvar a democracia britânica.
Admito que demorou um pouco, mas finalmente fiz as pazes com raiva, graças a Edmund Burke, que em 1769 esclareceu para mim a diferença entre paciência e covardia. Burke entendeu o lugar da raiva na jornada para a justiça. Ele escreveu: "Existe um limite a partir do qual a tolerância deixa de ser uma virtude".
Com a democracia e o próprio caráter deste país em perigo, sinto-me obrigada a levantar essa questão em todos os lugares. Menina. Boazinha. Nunca. Mais.
Pelo menos não até que a América seja a América novamente."
Joan Chittister é uma freira beneditina da Pensilvania, EUA.