Quem pouco conhece sobre óleos essenciais, acaba tendo uma visão restrita, quando não incompreensível do filme O Perfume.
Convido a esta instigante viagem sensorial, com trechos desta maravilha literária do alemão Patrick Süskind.
por Milene Cristine Siqueira
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O Perfume mostra a fixação do personagem Jean-Baptiste Grenouille em conseguir - à primeira vista - identidade, amor e domínio. Mas não era qualquer domínio, nem qualquer identidade, nem qualquer amor...
Grenouille entusiasma-se com esse objetivo ao sentir o aroma de uma jovem ruiva, aquela a quem entre tantos cheiros, ele - com sua capacidade olfativa singular -reconhece ser o aroma da Perfeição:
“...Este perfume tinha frescura; não era, porém, a frescura das limas ou das laranjas, a frescura da mirra ou da folha de canela, ou da hortelã, ou das bétulas, ou da cânfora, ou das agulhas de pinheiro, nem a de uma chuva de Maio, de um vento gelado ou da água de uma nascente... e continha simultaneamente calor; mas não um calor semelhante ao da bergamota, do cipreste ou do musgo, nem ao do jasmim ou do narciso, nem ao de um bosque de rosas ou de íris... Este perfume era uma mistura de ambos, do que passa e do que pesa; não uma mistura, mas uma unidade, e, além disso, humilde e fraco, e, no entanto, robusto e resistente como um pedaço de seda fina e brilhante... e, todavia, não como a seda, mas antes como o leite com mel onde se molha um biscoito, o que nem com a melhor das boas vontades se conjugava:leite e seda! Incompreensível este perfume, indescritível, impossível de classificar! Não deveria, na realidade, existir. E, no entanto, ali estava com a mais absoluta das obviedades...” (*1)
Eu li o livro em 1995, e a cena grotesca do nascimento de Grenouille sob a mesa de limpar peixes na Paris de 1738, era tão vívida em minha lembrança tal qual o filme mostrou, quando o assisti em 2007.
A cena do nascimento deve ser proposital, pois é fato de que o corpo humano em excitação sexual exale um odor similar ao de peixes e mariscos. Grenouille será o primeiro dos outros quatro filhos nascidos na mesma situação que irá nesse ambiente podre e fétido - em meio ao lixo e peixes em decomposição - jogado na sombra e no cheiro da vida que fenece, sobreviver.
Nesse ambiente onde se mesclam o cheiro da fertilidade e da morte, Grenouille nasce com uma capacidade olfatória singular e a usará como o usa um animal predador, ou menos, pois Süskind o compara a um... carrapato.
Grenouille ainda irá sobreviver em vários episódios narrados no livro. “...Tinha a resistência de uma bactéria” - o que justifica a aparência de frágil, manco, com cicatrizes e escoriações que apresenta o personagem no filme.
Grenouille tem um olfato incomum, mas não possui cheiro!
Para os personagens que faz contato, deixa sempre um rastro destrutivo“...devorava tudo, absolutamente tudo e absorvia tudo”.
Uma pena que no filme não se conte a história de Madame Gaillard, do padre Terrier, nem das amas que o rejeitam, pois “ ...ele suga-lhes até os ossos...” , do fato incomôdo de que Grenouille causa à todas as pessoas que são invadidas (cheiradas) em suas emoções mais profundas. Da estranheza que causa, afinal não é possível 'cheirar' quem é Grenouille.
Até que finalmente encontra Madame Gaillard com seu nariz torto:
E assim, lhe é aceitável em seu orfanato, até que mais tarde Madame Gaillard começa a notar em Grenouille diversos poderes “...sobrenaturais”, como saber (cheirar) quando as pessoas estão chegando. Até o medo maior de que ele também descubra seu dinheiro guardado, e assim trata de livrar-se dele.
É fato que a primeira vez que assisti ao filme, não notei alguns detalhes, nossos olhos acabam ficando receosos, sobretudo dos assassinatos. Tem muitas cenas escuras, pois além da época, a claridade dá o contraste – como morte e vida - a luz revela os belos campos de lavanda ou o verde das montanhas.
Há uma cena memorável do perfumista Baldini, interpretado por Dustin Hoffman, que viaja no atemporal em cores, leveza, amor e frescor ao sentir um perfume elaborado por Grenouille.
Grenouille só irá perceber que não cheira a nada bem mais tarde, quando se retira nas montanhas, lá onde até então pensara ser feliz, no lugar onde não haviam comparações...
Numa cena do filme, Grenouille passa por cães de guarda, que dormem, sem ser de forma alguma notado – aparecendo mais nitidamente aos nossos olhos como se sente: um fantasma.
Não é contado no filme, mas a primeira possibilidade de Grenouille ser notado é quando formula para si um perfume com cheiro humano, o cheiro superficial, mas o suficiente para enganar as pessoas – consegue ser “visto”! Inclusive, Grenouille usando desse artifício melhora sua postura corporal.
Só que a partir daí... Grenouille tem uma ideia que lhe faria mais do que um igual...
Em Grasse, de posse das essências (almas) das jovens, Grenouille finalmente irá elaborar “O Perfume” na cena mais surpreendente do filme.
A cena na Place dus Cours onde seria executado, que vista sem entendimento irá parecer completamente desprovida de sentido - como nada além de uma grande orgia - é o contexto aqui descrito:
Grenouille revestido de toda aura aromática de apenas uma gota do “Perfume”, transmuta-se para as pessoas em Anjo ou na personificação do melhor que elas crêem. Diferentemente do que parece, as pessoas não se desnudam com o olhar da moralidade com o qual podemos assistir. O “Perfume” é a descrição da primeira jovem (*1), o aroma da união dos opostos, da totalidade, da Unidade!
As pessoas entram no seu paraíso pessoal, numa nuvem espiritual que toma todo o ar, só há a embriaguez do êxtase para respirar... da liberdade, da alegria, da inocência.
E desprovidos de qualquer razão, e portanto dos preconceitos, do julgamento, do Bem e do Mal, de um passado e de um futuro, transcendem como podem, profano e sagrado são um só, buscando através dos seus corpos também ser Um - inebriados dão-se, acolhem-se, fundem-se. É a alegoria de um arrebatamento indescritível, nos dando uma mostra à semelhança dos aromas mais sutis na natureza, que são pura onda de energia vital/sexual!
O pai de Laure, Richis, vê a legitimidade em essência de sua filha, aromaticamente vestido em Grenouille.
Grenouille num primeiro momento comemora seu feito, ri, vive o grande triunfo. Mas não demora muito para ir do êxito ao fracasso, cair em si e derramar uma gota de lágrima. Proporcionara às pessoas a embriaguez do Amor, mas ele, Grenouille, começa a se sentir mal, sufocado da falta de si mesmo.
Frustrado, começa uma caminhada de volta à Paris. Com o Perfume no bolso, sabe que detém de um poder que lhe pode proporcionar qualquer coisa, pois faz as pessoas amarem. Mas já nada importa, pois sabe que com toda riqueza e todo poder que poderia ter, nada disso lhe faria ter seu próprio cheiro e então ser alguém, e mais que ser alguém para os outros, agora percebera o mais importante “...não podia cheirar a si mesmo e, por isso, jamais saberia quem ele era”.
E constata sobre o Perfume, e seu próprio paradoxo “...o único que alguma vez o reconheceu em sua verdadeira beleza fui eu, porque eu mesmo o fiz. E ao mesmo tempo sou o único a quem ele não pode fascinar, não pode deixar fora de si. Sou o único para quem não tem sentido.”
Quando Grenouille relembra a cena da praça, pensa: “...As pessoas, no entanto, acreditavam que desejavam a mim, e o que elas realmente desejavam permaneceu um segredo para elas.”
Grenouille chega à Paris, ao mesmo local do seu nascimento, ao mesmo cheiro.
Mistura-se ao redor de uma fogueira - como sempre sem ser notado - entre os ladrões, prostitutas, assassinos, desesperados, famintos. E ali derrama em si todo o conteúdo que carregava do “Perfume”, e após um momento de maravilhamento das pessoas, é por elas devorado.
Grenouille atira contra ele a arma mais poderosa que tinha em mãos, o Amor.
Saindo de Grasse, Grenouille havia decidido morrer. Já tinha experimentado viver com as pessoas e se refugiado delas, e nem uma ou outra ideia lhe agradava. E sua decepção o fez saber que o reconhecimento desejado era uma ilusão.
Caira na própria armadilha, o “Perfume” na Place dus Cours também distinguira o que havia de mais profundo no coração de Grenouille...
Grenouille descobrira que o amor das outras pessoas não lhe trazia satisfação, não só porque não era atribuído para ele próprio, mas porque não amava as pessoas, e a satisfação do amor, é amar! A possibilidade de sua sobrevivência sempre fora na ausência do amor. Conclui que o sentimento que o mantém é unicamente o ódio.
“...Uma vez, uma única vez, queria ser considerado em sua verdadeira existência e receber de outra pessoa uma resposta ao seu único sentimento verdadeiro, o ódio.”
A obra de Patrick Süskind primeiro nos convida à uma viagem fora da lógica, e nos conta muita coisa, muito mais que a história de um assassino... metáforas ao mal, ego, identidade, poder, manipulação, pureza, carisma, inocência, desejo. Seu cenário desvenda um pouco desse universo de aromas, dos óleos vegetais, da destilação à vapor, enfleurage, das notas olfativas, da vibração etérea que os óleos essenciais exercem. E nas entrelinhas conta-nos de Espírito, Unidade, Presença, Insights, Amor... porque sua obra tem o tema “Essência” !
Talvez Süskind se sinta como seu personagem “...Os outros só se submetem ao seu efeito, sim, nem se quer sabem que se trata de um perfume o que sobre eles atua e fascina.”.
Como cita: “... a temível beleza”, a fragrância do Amor Maior. A centelha divina e viva além da matéria.
Patrick Süskind, ao meu ver, faz uma genial metáfora na história de O Perfume criando um elo essencial entre Vida e Amor:
Amor e Vida, pulsação única universal, além do tempo e do nosso pequeno entendimento.
Grenouille recém-nascido contra o amor, passa sua trajetória na melhor das hipóteses como um farsante.
Escolhera vida sem Vida. E o desfecho desta história enigmática fecha a mandala da sua existência com a "morte" do ego.
consumado!
Fim
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