E é assim né.... toda vez que relemos um livro, ouvimos uma palestra sobre o que já (achávamos que) sabíamos, nos pegamos vendo, ouvindo, sentindo outra fatia que nos surpreende.
E não foi diferente hoje com A Festa de Babette, no qual eu só lembrava do tema central, da alquimia produzida pela Babette. Hoje, talvez por ter a lembrança viva do tema central estampado, reparei mais no que não notei (e como é que não notei antes? rs).
É, esse filme fala do que é mesmo sem ter sido. Das escolhas não feitas, que tanto nos martirizam, já que em qualquer escolha, há uma não escolha. Mas o filme declara a essência por trás das escolhas, porque há a Graça em tudo, sempre presente, ofertada como banquete ainda que o negamos. O discurso do general explica:
" (...) na nossa humana debilidade cremos que devemos escolher nesta vida. E trememos ante o risco que corremos. Nossa escolha não importa nada. Chega um tempo no que se abrem os nossos olhos e chegamos a compreender que a graça é infinita (...)"
E durante todo o banquete onde a atenção se tenta desviar para que não se comente sobre a comida (vista como blasfêmia), é a própria escolha sem escolha!
Dias atrás eu falei por aqui sobre escolhas, fico entusiasmada com escolhas viu, confesso... tenho um peso pessoal para as escolhas.
Mas hoje revendo esse filme ele me deu um baile nessa questão. Não há escolhas de fato. Tudo vem e permanece no coração, é o coração que nos dirige, mesmo que ainda não façamos a escolha 'condizente' passamos ainda assim a viver no que o coração conduz. Como o general que sem escolher a filha do pastor, passou toda sua vida com ela...
Quem escolhe é o coração. Portanto a escolha racional que fazemos pouco, ou nada, importa.
O coração que está conectado à Graça, independe da escolha - já que a Graça é infinita.
O filme termina na controversa esperança da filha do pastor no reconhecimento futuro através do mundo celestial, enquanto se viu acontecer o grato reconhecimento em cada presente, na Graça de cada dia, de cada evento, dos encontros, das sincronicidades, e tal controvérsia talvez porque também não nos atemos, não compreendemos que a Graça nos permeia o tempo todo - ao invés de uma promessa futura. E como continuou o discurso do general: "a Graça não impõe condições, e dirá: o que escolhermos nos é concedido; o que rechaçamos também nos é dado. Inclusive nos é devolvido aquilo que tiramos. Porque a misericórdia e a verdade se encontraram e se beijaram."
E segue o discurso original do livro traduzido que achei na sequência:
A misericórdia e a verdade, meus amigos, encontraram uma à outra. A retidão e a bem-aventurança devem beijar uma à outra. O homem, meus amigos, é frágil e tolo. A todos já nos foi dito que a graça divina encontra-se por todo o universo. Mas em nossa tolice e miopia humanas, imaginamos ser a graça finita. Por esse motivo, trememos. Trememos antes de fazer nossas escolhas na vida e após tê-las feito trememos de medo de ter escolhido errado. Mas eis que chega o momento em que nossos olhos estão abertos e vemos e percebemos que a graça é infinita. A graça, meus amigos, não exige nada de nós senão que a aguardemos com confiança e a reconheçamos com gratidão. A graça, irmãos, não impõe condições e não escolhe nenhum de nós em particular; a graça nos toma a todos em seu seio e proclama anistia geral. Vejam! Aquilo que escolhemos nos é dado e aquilo que recusamos nos é igualmente, e ao mesmo tempo, concedido. Sim, que o que rejeitamos seja copiosamente vertido sobre nós. Pois que a misericórdia e a verdade encontraram uma à outra e a retidão e a bem-aventurança beijaram uma à outra!
Além disso, a personagem Babette merece um post só sobre ela. Mas no embalo do banquete, os deixo para o deleite com esse texto de Rubem Alves:
(Fonte: www.releituras.com)
A festa de Babette
Rubem Alves
Um dos meus prazeres é passear pela feira. Vou para comprar. Olhos compradores são olhos caçadores: vão em busca de caça, coisas específicas para o almoço e a janta. Procuram. O que deve ser comprado está na listinha. Olhos caçadores não param sobre o que não está escrito nela. Mas não vou só para comprar. Alterno o olhar caçador com o olhar vagabundo. O olhar vagabundo não procura nada. Ele vai passeando sobre as coisas. O olhar vagabundo tem prazer nas coisas que não vão ser compradas e não vão ser comidas. O olhar caçador está a serviço da boca. Olham para a boca comer. Mas o olhar vagabundo, é ele que come. A gente fala: comer com os olhos. é verdade. Os olhos vagabundos são aqueles que comem o que vêem. E sentem prazer. A Adélia diz que Deus a castiga de vez em quando, tirando-lhe a poesia. Ela explica dizendo que fica sem poesia quando seus olhos, olhando para uma pedra, vêem uma pedra. Na feira é possível ir com olhos poéticos e com olhos não poéticos. Os olhos não poéticos vêem as coisas que serão comidas. Olham para as cebolas e pensam em molhos. Os olhos poéticos olham para as cebolas e pensam em outras coisas. Como o caso daquela paciente minha que, numa tarde igual a todas as outras, ao cortar uma cebola viu na cebola cortada coisas que nunca tinha visto. A cebola cortada lhe apareceu, repentinamente, como o vitral redondo de catedral. Pediu o meu auxílio. Pensou que estava ficando louca. Eu a tranqüilizei dizendo que o que ela pensava ser loucura nada mais era que um surto de poesia. Para confirmar o meu diagnóstico lembrei-lhe o poema de Pablo Neruda "A Cebola", em que ele fala dela como "rosa d'água com escamas de cristal". Depois de ler o poema do Neruda uma cebola nunca será a mesma coisa. Ando assim pela feira poetizando, vendo nas coisas que estão expostas nas bancas realidades assombrosas, incompreensíveis, maravilhosas. Pessoas há que, para terem experiências místicas, fazem longas peregrinações para lugares onde, segundo relatos de outros, algum anjo ou ser do outro mundo apareceu. Quando quero ter experiências místicas eu vou à feira. Cebolas, tomates, pimentões, uvas, caquis e bananas me assombram mais que anjos azuis e espíritos luminosos. Entidades encantadas. Seres de um outro mundo. Interrompem a mesmice do meu cotidiano.
Pimentões, brilhantes, lisos, vermelhos, amarelos e verdes. Ainda hei de decorar uma árvore de Natal com pimentões. Nabos brancos, redondos, outros obscenamente compridos. Lembro-me de uma crônica da querida e inspirada Hilda Hilst que escandalizou os delicados: ela ia pela feira poetizando eroticamente sobre nabos e pepinos. Escandalizou porque ela disse o que todo mundo pensa mas não tem coragem de dizer. Roxas berinjelas, cenouras amarelas, tomates redondos e vermelhos, morangas gomosas, salsinhas repicadas a tesourinha, cebolinhas, canudos ocos, bananas compridas e amarelas, caquis redondos e carnudos (sobre eles o Heládio Brito escreveu um poema tão gostoso quanto eles mesmos), mamões, úteros grávidos por dentro, laranjas alaranjadas (um gomo de laranja é um assombro, o suco guardado em milhares de garrafinhas transparentes), cocos duros e sisudos, pêssegos, perfume de jasmim do imperador, cachos de uvas, delicadas obras de arte, morangos vermelhos, frutinhas que se comem à beira do abismo... Minha caminhada me leva dos vegetais às carnes: lingüiças, costelas defumadas, carne de sol, galinhas, codornizes, bacalhau, peixes de todos os tipos, camarões, lagostas. Os vegetarianos estremecem. Compreendo, porque na alma eu também sou vegetariano. Fosse eu rei decretaria que no meu reino nenhum bicho seria morto para nosso prazer gastronômico. Mas rei não sou. Os bichos já foram mortos contra a minha vontade. Nada posso fazer para trazê-los de volta à vida. Assim, dou-lhes minha maior prova de amor: transformo-os em deleite culinário para que continuem a viver no meu corpo. De alguma maneira vivem em mim todas as coisas que comi. Sobre isso sabia muito bem o genial pintor Giuseppe Arcimboldo (1527-1593), que pintava os rostos das pessoas com os legumes, frutas e animais que se encontram nas bancas da feira. (Dê-se o prazer de ver as telas de Arcimboldo. Nas livrarias, coleção Taschen, mais ou menos quinze reais).
Meus pensamentos começam a teologar. Penso que Deus deve ter sido um artista brincalhão para inventar coisas tão incríveis para se comer. Penso mais: que ele foi gracioso. Deu-nos as coisas incompletas, cruas. Deixou-nos o prazer de inventar a culinária.
Comer é uma felicidade, se se tem fome. Todo mundo sabe disto. Até os ignorantes nenezinhos. Mas poucos são os que se dão conta de que felicidade maior que comer é cozinhar. Faz uns anos comecei a convidar alguns amigos para cozinharmos juntos, uma vez por semana. Eles chegavam lá pelas seis horas (acontecia na casa antiga onde hoje está o restaurante Dali). Cada noite um era o mestre cuca, escolhia o prato e dava as ordens. Os outros obedeciam alegremente. E aí começávamos a fazer as coisas comuns preliminares a cozinhar e comer: lavar, descascar, cortar — enquanto íamos ouvindo música, conversando, rindo, beliscando e bebericando. A comida ficava pronta lá pelas 11 da noite.
Ninguém tinha pressa. Não é por acaso que a palavra comer tenha sentido duplo. O prazer de comer, mesmo, não é muito demorado. Pode até ser muito rápido, como no McDonald's. O que é demorado são os prazeres preliminares, arrastados — quanto mais demora maior é a fome, maior a alegria no gozo final. Bom seria se cozinha e sala de comer fossem integradas — os arquitetos que cuidem disso — para que os que vão comer pudessem participar também dos prazeres do cozinhar. Sábios são os japoneses que descobriram um jeito de pôr a cozinha em cima da mesa onde se come, de modo que cozinhar e comer ficam sendo uma mesma coisa. Pois é precisamente isto que é o sukiyaki, que fica mais gostoso se se usa kimono de samurai.
Quem pensa que a comida só faz matar a fome está redondamente enganado. Comer é muito perigoso. Porque quem cozinha é parente próximo das bruxas e dos magos. Cozinhar é feitiçaria, alquimia. E comer é ser enfeitiçado. Sabia disso Babette, artista que conhecia os segredos de produzir alegria pela comida. Ela sabia que, depois de comer, as pessoas não permanecem as mesmas. Coisas mágicas acontecem. E desconfiavam disso os endurecidos moradores daquela aldeola, que tinham medo de comer do banquete que Babette lhes preparara. Achavam que ela era uma bruxa e que o banquete era um ritual de feitiçaria. No que eles estavam certos. Que era feitiçaria, era mesmo. Só que não do tipo que eles imaginavam. Achavam que Babette iria por suas almas a perder. Não iriam para o céu. De fato, a feitiçaria aconteceu: sopa de tartaruga, cailles au sarcophage, vinhos maravilhosos, o prazer amaciando os sentimentos e pensamentos, as durezas e rugas do corpo sendo alisadas pelo paladar, as máscaras caindo, os rostos endurecidos ficando bonitos pelo riso, in vino veritas... Está tudo no filme A Festa de Babette. Terminado o banquete, já na rua, eles se dão as mãos numa grande roda e cantam como crianças... Perceberam, de repente, que o céu não se encontra depois que se morre. Ele acontece em raros momentos de magia e encantamento, quando a máscara-armadura que cobre o nosso rosto cai e nos tornamos crianças de novo. Bom seria se a magia da Festa de Babette pudesse ser repetida...
O texto acima foi publicado no jornal "Correio Popular", Campinas(SP), com o qual o educador e escritor colabora.Rubem Alves: sua vida e sua obra estão em "Biografias".